Quando eu continuei a discussão aqui sobre até que ponto podem chegar os animes japoneses, isso há quase 3 anos atrás, eu mostrei parte da grande capacidade japonesa de criar estórias diversas, pois desde o começo do século XX, ainda derivados do que os séculos XVII, XVIII e XIX, do que o Ukiyo-e trazia.
Realmente se encontra de tudo por lá, principalmente, quando começaram a adaptar os mangás em animações na década de 60, aí o mundo começou a conhecer do que estava mais enraizado na cultura nipônica.
Todo o mundo hoje tem uma noção mais apurada do que os japoneses realmente tem em seu dia-dia pelos slice of lifes dos mais variados, uns com uma tocada mais realista, ao mesmo tempo que caricata, como Lucky Star, Azumanga Daioh, K-on, e outros. Os shounens também abordaram por várias vezes aspectos do folclore japonês, como em Bleach e os ceifeiros de almas da Sociedade das Almas, ou mesmo Naruto com Kaguya e Amaterasu, ou você achava que o Kishimoto colocou isto do nada? Não mesmo!
Os exemplos são amplos daquilo que os japoneses têm a oferecer de sua cultura, enquanto que o Ocidente se perdeu no personagem, e a criatividade de outrora deu lugar a conteúdos saturados de corporativismo, persistindo nas mesmas obras, com as mesmas mensagens, sem algo realmente novo. Se nem com marcas consagradas como os Looney Tunes, eles conseguem honrar sua história, quem dirá criar algo novo.
Mas isto está mudando aos muitos, e sim, muitos! Quando eu trouxer o começo do que foi a animação de Azumanga Daioh (antes da próxima temporada, junto com dois textos que prometi desde minha entrada na Anime United, sobre os clássicos da Warner Bros e Rounjin Z, e podem cobrar de mim), eu volto a trazer este detalhe.
Azumanga Daioh foi um sucesso de vendas nos mangás, provavelmente o melhor Yonkoma já feito, certamente um dos melhores, começou com uma pequena animação independente mostrando as personagens centrais da série em 3m43s de duração, na qual, o pessoal responsável pelo curta acabaria por trabalhar na J.C Staff, estúdio que acabou por animar a série. O anime fez ainda mais sucesso e é lembrado até os dias de hoje, e pensar que tudo começou com uma animação independente baseada na obra de Kiyohiko Azuma.
E hoje, pessoas estão se erguendo no mercado seguindo a este mesmo princípio, e no caso do ocidente, voltando as raízes. O Distrito dos Lampejos entra para o mercado mostrando este detalhe fundamental, que está em grande falta por parte das grandes produtoras em todo o Ocidente. A Glitch que já estava ficando conhecida por Murder Drones e O Incrível Circo Digital, vai se estabelecendo na Internet com mais uma obra promissora.
A obra foi ao ar no YouTube no dia 18 de abril seguindo os padrões da Glitch, com múltiplas dublagens, incluindo uma em português, que analisarei mais à frente, e já conseguindo até o momento, 12 milhões de visualizações, e com mais de dez dias após sua estreia, já posso fazer uma análise com mais cabeça e menos emoção.
Não sou o maior fã de terror ou horror, mas devo dizer, conseguiu despertar meu interesse pelo gênero, e nas obras audiovisuais como um todo, é algo que tem um grande potencial, tanto em sua animação, quanto no design, enredo, personagens, trilha sonora e direção. Arrisco dizer que não teremos um conjunto tão bom a ser estreado neste ano de 2025, pelo menos, no espectro dos originais.
E para se ver melhor o que a obra é, temos que ver o backstage de O Distrito dos Lampejos. Nick Szopko é o autor, roteirista, animador e responsável pelos designs, e se caso o nome dele não é algo familiar para você, ele foi um dos responsáveis por Helluva Boss, outra animação indie de grande sucesso digital.
Kevin Temmer é um dos animadores da série, em fato, sendo o animador-chefe da obra, ele sendo figura conhecida pela Glitch, participando integralmente de O Incrível Circo Digital, além de participar na caracterização de alguns personagens, e como trabalhou com Gooseworx, deu para ver parte de seu design em alguns personagens da nova obra.
Ou seja, a produção da obra está integralmente indie do começo ao fim, com a equipe de produção já tendo participado de outras obras da Glitch Productions e outras obras originais indie. E se a Netflix se interessou em distribuir uma de suas obras, O Distrito dos Lampejos aqui pode alcançar voos ainda maiores, pois demonstra de maneira notória um incrível nível de qualidade gráfica, sonora e técnica.
O 3D no qual a obra se baseia é incrivelmente bem colocado, lembrando o estilo stop motion, com um nível de texturas altamente fiéis a proposta de horror e terror, que deu aos personagens ainda mais destaque em seus designs durante a obra, não somente visualmente, mas no uso geral pelo episódio. Se é apresentado um cenário muito à frente do tempo humano comum, quase que pós-apocalíptico, onde criaturas mortas vivas estão a preencher o mundo.
O grupo principal é composto por Desmiolado, uma criatura grande com cabeça de pão, um putrefato chamado Mud, um açougueiro com um cutelo em sua cabeça e líder da máfia, Ken, e sua filha e única humana de fato no grupo, e personagem central da trama, Melancholy “Mel” Hill, que se traveste com faixas de múmia, já que se disfarça no mundo como uma morta-viva.
E como um bom horror deve ser, ele é graficamente melequento e nojento, e não economiza no gore, com tomadas passando até mesmo buraco feito pelas balas. E nas ações, ele consegue ser incrivelmente divertido e com uma plasticidade que enche seus olhos com efeitos muito bons,
O enredo é um ponto fora da curva nas obras da Glitch, e que outras pessoas que fizeram análises perceberam, já que o piloto é recheado de detalhes e informações sobre seu enredo futuro, diferente dos outros lançamentos, onde ainda não se sabia ao certo de seu conteúdo geral, muito menos de seu foco e trama principal.
E as informações estão espalhadas por fotos, folders, planilhas e outros documentos mostrados pelo episódio, o que já está levantando as mais diversas teorias pela Internet. Porém, é tão carregado de informações, que de fato, você tem de assistir pelo menos umas três vezes para captá-las, depois da primeira vez assistindo normalmente, para repetir o episódio em pausas constantes e ligar os pontos.
Até hoje, não se sabe ao certo o rumo de O Incrível Circo Digital, mas já é algo bem mais formulado aqui. Ao mesmo tempo que é fácil de compreender a trama da obra, é difícil compreender o que une tudo isto, o que intriga sua cabeça imediatamente ao assistir o episódio.
A obra mostra este mundo eras a frente do que já se foi a humanidade, onde já não existe mais morte, claramente não é uma representação do Inferno, já que se é mostrado as camadas deste mundo, onde há um Paraíso Perdido, o Inferno em si, e o Distrito dos Lampejos, onde a obra é formulada. O paraíso perdido onde um ovo humano foi cuidado, e dá para ver que Mel é o centro da trama.
Ela é o pivô do episódio, além de ser claro para todos que tudo é voltado para ela, já que o que mantém esse grupo unido, sendo intitulado de mão-negra, é uma profecia envolvendo a imortalidade destes mortos-vivos, ligada ao ovo humano.
A trama em si se desenvolve em alguns planos diferentes apresentado ao decorrer do episódio. Mel é humana, destacada pelo sangue preto que todo humano possui, e isso só é conhecido por seu pai, Ken, e deve ser escondido de todos os outros. O primeiro furo (pelo menos um que é temporário) neste roteiro é, os mortos-vivos são imortais e inalteráveis, um humano cresce e se desenvolve, e não tem como ser eterno, e os outros membros não perceberam isto.
Apesar de que acho o detalhe ainda como mero detalhe, e não algo que ficará intocável ao longo da série. Você ainda vê uma série de detalhes que ainda não fecham, mas torna a obra muito bem incorporada e interessante de se acompanhar, como as Virtudes no Paraíso Perdido, com cérebros humanos e corpos robóticos, seria uma alusão as virtudes do paraíso cristão? Vá saber!
Mas algo que vale notar no roteiro é sua toada humorística, muito caricata e bem formulada, feita sutilmente em algumas situações, e totalmente escrachada em outras durante o episódio. O lado escrachado é mostrado logo no começo, com uma caçada ridícula a um personagem que sabe do segredo de Mel, e o grupo vai atrás causando uma destruição desproporcional e hilária.
É sútil em sacadas bem montadas e escolhidas, mostrado em diálogos com gags (piadas rápidas), quando Ken e Mel tem uma conversa de pai para filha, e do nada, Mel tira um projetor mostrando seu plano, que se tornaria a trama central do episódio, ou mesmo, quando ao invadir o Paraíso por um fundo falso no caminhão, uma das virtudes pisa no assoalho, levantando poeira, fazendo Mel quase espirrar e estragar o disfarce.
Bem diferente do terror psicológico de O Incrível Circo Digital, usando um humor ácido que é divertido e que caiu como uma luva na trama, e que te mantém entretido, e é bem intercalado com ação pura, e o contexto da obra.
Além disso, nós do Brasil fomos agraciados com uma dublagem de peso e muito bem produzida pela Imagine Sound Thinking em São Paulo, com dubladores do Rio de Janeiro envolvidos. Eu assisti tanto no original em inglês, quanto dublado, e enquanto a obra tem na versão originária pessoas que estão surgindo no mercado de atuação, sendo feitos por pessoas na área indie, nossa versão ganhou dubladores de peso.
A Mel é dublada pela Bianca Alencar, dubladora da Ririsa em Ririsa, Uma Garota em 2.5D, Ken é atuado por Mauro Ramos, que deu voz ao Pumba, Shreck, e fez o Jet Black em Cowboy Bebop. Hélio Ribeiro, a voz do último Coringa, Caveira Vermelha, e outros tantos personagens marcantes, dá voz ao Mud. Francisco Júnior, a voz do Sukuna em Jujutsu Kaisen, interpreta o Desmiolado, Jorge Vasconcellos interpreta meu xará, Josué, tendo sido a voz do Macaco Louco.
Silvio Giraldi dá vida ao Jack, ele tendo sido o Kingo em O Incrível Circo Digital e o Hiruka em Naruto, a Marli Bortoletto, voz da Mônica, William Viana, que dublou o protagonista de Overflow e o Jax em O Incrível Circo Digital, e Luiz Fier Motta, sendo o narrador do episódio, são algumas das vozes adicionais que compõe a obra, e trazem um grande valor agregado para a obra, e sinceramente, sendo mais qualificados do que as vozes originais.
As minhas expectativas estão altas com O Distrito dos Lampejos, pois a composição da obra é muito detalhada e bem apresentada, e sendo um conteúdo original, tem capacidades de ir muito bem no futuro próximo. O 3D é um dos melhores que vi nos últimos anos, tanto pelo design e texturas dos personagens e cenários, quanto pelo estilo escolhido para o gênero de horror.
A trama é incrível e esbanja personalidade própria, e é uma adição de peso no portfólio da Glitch. E vale ressaltar a evolução da produtora, que desde o lançamento de Murder Drunes em 2021, está mostrando um desenvolvimento impressionante de suas produções, desde o lado mais técnico, até a promoção. Eu recomendo a todos que queiram ver o que um bom horror cheio de humor ácido e com ação esdruxula pode entregar, e com grande qualidade na execução de todos os seus aspectos.
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