A Importância da Dublagem para os Animes – Parte 2 Dublagem IA é um avanço desnecessário, e eis a razão

Josué Fraga Costa
(Redator)
Anime United
©Anime United

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Em um texto que fiz aqui na Anime United em 2022 sobre a dublagem, em três pontos mostrei A Importância da Dublagem para os Animes, inclusive para os que preferem as legendas, sendo eles: o alcance, a maior disponibilidade que o mercado oferece, e a conveniência e acessibilidade. Quanto mais pessoas assistirem, mais o mercado se interessa naquele lugar, o que gera mais ofertas de conteúdo disponível daquele conteúdo, mesmo os não dublados, e gerando mais conveniência para os espectadores.

A dublagem, como disse o eterno Waldyr Sant’anna, que foi o primeiro dublador de Homer Simpson, “a dublagem é acima de tudo a preservação de nosso idioma”, e ele foi cirúrgico nesta colocação, e por conta dela, há muito o que se discutir sobre a dublagem.

Recentemente um manifesto dos profissionais da dublagem fora lançado sobre a regulamentação da IA no ramo, e gerou muitas discussões por quem é fã dos dubladores e da dublagem como um todo, porém, pouco se está falando das péssimas dinâmicas trazidas pela “dublagem” feita por IA, através da captação da entonação da voz, e conversão de textos em voz, e neste texto abordarei mais três pontos da importância da verdadeira dublagem.

Financeiramente, sem sentido

Dublagem
©Dublagem

Já ouvi algumas vezes a temática das finanças em discussões sobre a dublagem, e como o uso de IA baratearia os custos “altos” que profissionais da área geram; os dubladores, uma equipe de direção e outra de tradução. Porém me veio a mente um texto que fiz recentemente sobre o Sucesso por trás de O Incrível Circo Digital, que recebeu o incrível número de 15 dublagens oficiais, sendo elas em: árabe, alemão, chinês, coreano, espanhol, filipino, húngaro, indonésio, inglês, japonês, português, russo, tailandês, turco e ucraniano (o árabe sendo o mais novo dentre os idiomas adicionados).

A Glitch Produtions, produtora por trás de O Incrível Circo Digital, é uma produtora independente da Austrália fundada por dois irmãos, Kevin Lerdwichagul e Luke Lerdwichagul, que conseguiram se estabelecer na Internet com a série SMG4, com um canal no YouTube que passou das 7 milhões de inscrições, e logo produziram outros conteúdos como Murder Drones, que arrebataram enormes quantias de espectadores de uma só vez.

Agora me respondam, como que uma pequena produtora no fim do mundo, longe dos grandes centros de produções audiovisuais como o Japão e os EUA, conseguiram grana o suficiente para dublar uma obra totalmente original em 15 IDIOMAS? E que eles sozinhos podem alcançar por baixo, de 2 a 3 BILHÕES de pessoas, e que deram mais de 241 milhões de visualizações no YouTube.

Glitch Production
©Glitch Production

Se fosse realmente tão caro assim dublar num único país, quem dirá em vários, isto seria possível de realizar com meia dúzia de gato pingado na Austrália? Outro detalhe fundamental para se analisar no ponto financeiro, os custos para um filme graúdo estão na casa dos 300 milhões ou mais, dizem que o fiasco de Cowboy Bebop da Netflix usou metade deste valor numa série de 10 episódios, pergunto o seguinte, os preços de dublagem mundo afora realmente estariam custando tão caro ao ponto de se cogitar uma opção bem mais barata?

Mesmo que eu não tenha os números dos estúdios de dublagem, façamos um exercício de imaginação; suponhamos que uma obra custe 100 milhões de reais, e 5% disso fosse para dublar uma obra em 15 idiomas diferentes, 5 milhões de reais poupados fariam uma enorme diferença nas economias de uma obra na casa da centena de milhão? Sejamos racionais e práticos, seria uma economia se ao invés de comprar um carro novo de 100.000, comprar um seminovo de 50.000, com os mesmos opcionais, melhor consumo de combustível, e valor de IPVA mais baixo, seria 50% de economia, aí sim teria uma relevância nas finanças, ao invés de meros 5%.

Aumentariam o serviço?

Dublagem
©Dublagem

Em meu primeiro texto sobre o tema eu coloco algo que é preto no branco, que uma obra dublada é resultado do interesse de mercado que as produtoras tem para popularizarem seu produto, e caso consiga o sucesso, até mesmo obras menores ganham espaço naquele mercado. Sim, se você está assistindo animes como Snack Basue, Boku no Kokoro, Synduality: Noir, dentre tantos outros animes, agradeça àqueles do passado, que nos anos 80 e 90 abriram espaço no imaginário dos espectadores quando eram transmitidos na televisão aberta, e perceba, nenhum dos animes citados, com exceção de Synduality, estão dublados, ainda!

Se temos uma Crunchyroll que vive somente de animes japoneses, Netflix comprando animes a rodo, bem como a Disney por meio do Disney+ e Star+, além da Amazon Prime Video, trazendo uma quantidade de animes ao nosso mercado, que a pouco tempo sequer poderíamos pensar que fosse possível, foi por conta do sucesso que os clássicos tiveram. Mas tem um detalhe que não me desce na garganta, por quê a lista de dublados é tão pequena para nós?

Há 6 anos atrás pude assistir a muitos animes de uma só vez, e descobri uma grande lista de animes que os americanos tem e devidamente dublados, que nós aqui sequer o temos em algum serviço de streaming. Pego por base as nossas Primeiras Impressões de Inverno 2024 que trouxemos para vocês neste começo de ano, dos animes que eu fiz, somente Mettalic Rouge era dublado, Synduality: Noir ainda não recebeu a dublagem para a segunda parte (no momento que esta matéria é redigida), e são animações originais, mas Boku no Kokoro que é uma adaptação de mangá, sequer está em um serviço disponível para o Brasil.

Boku no Kokoro no Yabai Yatsu
©Boku no Kokoro no Yabai Yatsu

O meu questionamento é, mesmo que a cultura dos animes já esteja bem difusa em nosso país, por quê recebemos poucas animações dubladas, e com as dublagens disponíveis em simultâneo com a estreia da obra como um todo? Quando eu fiz a primeira parte deste artigo, até citei a onda de animes que estavam sendo trazidos, alguns inclusive do passado, mas ainda temos poucos animes dublados no geral, e a disponibilidade também está questionável, pois Tomo-Chan, anime este que analisei aqui no site e foi o meu texto mais curtido por vocês, nossos leitores, só ganhou uma dublagem praticamente meio ano após o lançamento, perdendo todo o hype que a obra trouxe à época.

Minha principal questão neste ponto é, trariam mais obras disponíveis em nosso idioma de fato, ou continuariam a trazer poucas obras em português? Pois, se a questão for o trabalho “lento” do humano, coisa que eu tendo a discordar em relação à dublagem, e por isso que se dispõe poucos conteúdos em nosso idioma, por quê temos mais filmes e séries dublados do que animações? Me parece que estão trocando de problema, sem consertar o antigo.

Tomo-chan wa Onnanoko!
©Tomo-chan wa Onnanoko!

Seria a mesma coisa de lançar um jogo com gráficos inéditos, ridiculamente realistas e com uma imersão sem precedentes, uma qualidade de som real sendo trazida aos ouvidos dos jogadores, e nenhuma máquina capaz de rodar isto tudo ter sido disponibilizada para a grande base de jogadores no mundo. Qual o ponto? Não seria melhor ter feito jogos bons o suficiente para as atuais plataformas, isentas de erros e bugs?

Sou fã nato do desenvolvimento da tecnologia, se não fosse isso, não teríamos ônibus com torque o suficiente nem para subir numa simples gradiente, e as viagens seriam horríveis, nem os alimentos teriam a segurança alimentar para não te intoxicar ao prepará-los. Mas, avanços tecnológicos sem pontos sólidos, e no puro desenvolvimentismo, criam mais problemas do que geram soluções práticas.

A arte é natural, a IA não

Synduality: Noir
©Synduality: Noir

Por fim, e não menos importante, alguém parou mesmo para analisar as dinâmicas que isso trará, e nem digo o mais óbvio que são os empregos de pessoas, que o fazem com amor e dedicação, mas principalmente, para que sobrevivam em nosso mundo, mas a pura dinâmica de linguagem que não tem como funcionar?

Permita-me explicar como é feita a ação:

• Captação de tonalidades da voz do sujeito;
• Estabelecimento de um parâmetro de voz estável;
• Limpeza de ruídos e outros tratamentos;
• Tonalidade adquirida e pronta para uso.

Basicamente, captam suas várias tonalidades de voz, tanto os agudos, quanto os graves, tratam tudo para que se tenha um resultado mais aproximado o possível, e daí a sua voz pode ser usada para quaisquer fins. Isto não é uma tecnologia desenvolvida ontem, os GPS com guias de vozes já existem há tempos, antigamente era uma gravação convencional, e se desenvolveu para que uma voz conseguisse falar o aglutinamento de letras de maneira plena, até o Google Tradutor usa um sistema do tipo.

Google Tradutor
©Google Tradutor

Antes, se capturava o movimento dos lábios, usavam uma quantidade absurda de exemplos vocais da pessoa para que a sintetização pudesse dar resultados sólidos. Hoje, se capta detalhes tonais da voz para obter o mesmo resultado, para que então se use a voz da pessoa, mesmo não sendo da mesma. Mas há detalhes que não fecham a conta e não tem como serem ignorados ou corrigidos.

Com a voz sintetizada, há dois métodos para se usar a voz de alguém:

Leitura de Textos: onde a IA lê as palavras de maneira plena e em sequência, onde audiobooks e sites já usam a tempos este recurso.

Transformação Vocal: onde a voz original é traduzida diretamente para o idioma desejado, sendo mixada de forma que siga o tempo verbal original, ou que alguém fale por microfone e use um software que transforme a voz original com alguma voz já sintetizada, na prática, alguém fala com a voz de outra pessoa.

Estúdios de animação
©Estúdios de animação

Há dois pontos que fazem que tudo isto não funcione corretamente:

• Primeiro, o tom de voz está atrelado diretamente ao idioma que se está falando, por exemplo, os japoneses tem um tom mais agudo e anasalado, visto os dígrafos que usam para os kanji, hiragana e katakana. O russo tem um tom de voz mais grave e estável, pelo mesmo motivo;
• Segundo, o tempo verbal dos idiomas são distintos, mesmo o português e o espanhol compartilhando 70% de toda a composição linguística, letras, fonemas, dígrafos, sistema alfanumérico, palavras, sentenças e etc, ainda sim há pontuais diferenças na forma que a temporização funciona entre as palavras.

Na prática, imagine qualquer fala de anime que você tenha de cor em japonês. Agora, imagine esta voz em português com a mesma frase. Você acha mesmo que alguém que seja lusófono fale assim? Em japonês, há uma diferença abismal no tempo das frases que nós usamos em português, e isso é confirmado pelos dubladores e tradutores que participam do processo de dublagem, onde por várias vezes, uma simples frase de 5 segundos deles, seriam algo de 1 segundo em português, e as vezes, o contrário também existe.

Dublagem
©Dublagem

Isto só é corrigido com a boa contemporização dos dubladores com sua atuação, e a equipe de direção dando as coordenadas na linha de tempo do loop, como é conhecido o tempo de dublagem. Mesmo que contratem alguém com domínio pleno do idioma, ou seja, alguém autóctone daquele idioma, como nós brasileiros com o português, ou o mexicano com o espanhol, e este alguém dê sua contribuição com o idioma e suas peculiaridades, mostrando gírias, vícios, erros convencionais e etc, o ponto não era substituir pessoas com uma tecnologia plena?

A atuação não pode ser substituída por nenhuma tecnologia, pois ela é acima de tudo, NATURAL, e uma inteligência artificial, como nome já diz, é o oposto disto. A linguagem funciona de maneira orgânica até mesmo entre os animais irracionais, você sabe que um canino está defendendo sua posição quando ele rosna parado, pois além do som que ele emite, a postura dele também interfere na comunicação. A ironia funciona de maneira diferente entre os idiomas, ou você acha mesmo que a ironia em português, funcionaria em turco?

A atuação é uma arte natural, que não tem como ser assimilada nem mesmo entre os atores, assim como eu sendo músico, não há como reproduzir a 100% um baterista tocando uma música, pois ele tem uma expertise e experiência, quando eu tenho outra. Fora a disparidade de qualidade de ação que os seres humanos tem, pois diferente dos animais irracionais, que se guiam unicamente por instintos de sua espécie, o humano tem emoções, sentimentos, conhecimento, sabedoria, algo que não pode ser reproduzido de pessoa para pessoa a 100%.

Conclusão

Herbert Richers
©Herbert Richers

Consegui falar sobre o assunto com a Gisela Dias, dubladora que pude entrevistar no ano passado aqui mesmo na Anime United, e ela pode responder as perguntas que citei anteriormente:

Josué: A primeira é, financeiramente, qual o impacto que uma dublagem tem no orçamento de uma obra, e quanto se gasta para fazer uma dublagem, e quais os meandros de se dublar uma obra?

Gisela: Essa resposta quem poderia fornecer melhor seria a casa da dublagem. O dublador se ganha por loops. A cada 20 loops o valor é padrão para todos. 1 loop tem 20 segundos de produção contínua.

Josué: Você crê que a tecnologia IA possa substituir integralmente a atuação de uma pessoa?

Gisela: Não. Nenhuma IA pode substituir a arte de criação que o ser humano pode criar. Ele copia mas nunca será a mesma coisa. Por questões de interpretação, ética, criatividade… a criação da arte é humana!

Josué: Sobre o manifesto dos dubladores, quais são suas opiniões a respeito do mesmo, e quais serão as ações que o setor pensa em tomar?

Gisela: Esperamos uma regularização justa de forma ética em prol da arte humanizada.

Acho importante que os dubladores se posicionem, afinal, estão salvando suas vidas, mas acho importante deixar bastante claro as dinâmicas que ocorrem com isto, na mesma os veículos elétricos que estão sendo forçados goela abaixo no consumidor, sem que haja uma rede elétrica que suporte isso tudo, fora a mão de obra e equipamentos para se trabalhar com estes carros, e hoje, estão pipocando relatos na Internet sobre as dinâmicas de se possuir um veículo elétrico, e não são os melhores relatos.

Faltam mais discussões e mais conhecimento sobre o tema, e é de suma importância que os profissionais da dublagem venham a público e as apresentem, pois eles sim conhecem sobre o tema com propriedade e clareza. Pessoalmente, acho digno em apoiar a dublagem, pois a arte precisa de ser valorizada por aqueles que realmente se preocupam.

Financeiramente é sem ponto, pois os custos não são tão elevados quanto se pensa, e com preços altíssimos das grandes produções, é ilógico pensar que cortar a dublagem ajudaria na economia de maneira significativa. Duvido muito que aumentaria a disponibilidade de mais obras em nosso ou qualquer outro idioma, pois, se a oferta de trabalho fosse tão pequena para a demanda do mercado, não veríamos documentários, séries e filmes sendo dublados a rodo por aí. E como artista, afirmo, NADA pode assimilar a arte, nem mesmo outro ser humano pode replicar a 100% a arte que outra pessoa produziu, e essa é a graça da arte, em alcançar a beleza humanamente possível.


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